segunda-feira, 25 de julho de 2011

Doenças — O Ser Humano Como Responsável Pelas Suas Próprias Moléstias

Por Roy Porter — Blood and Guts: Disease

Grupo de bactérias "Vibrio cholerae", causadoras da cólera.A guerra entre a doença e os médicos, travada no campo de batalha da carne, tem começo e meio, mas não tem fim. A história da medicina, em outras palavras, está longe de ser uma narrativa simples de um progresso triunfante. Como é sugerido pela história da caixa de Pandora ou pela da Queda cristã, as pragas e pestes são mais do que riscos naturais inevitáveis que, segundo esperávamos, serão superados: são predominantemente criadas pela própria humanidade. As epidemias surgiram com a sociedade, e a doença foi e continuara a ser um produto social, tanto quanto a medicina que luta contra ela. A civilização não traz apenas mal estar, mas também doenças.

Uns cinco milhões de anos atrás, dizem-nos os antropólogos, a África assistiu ao aparecimento do primeiro homem-macaco, o australopithecine, de teste estreita e mandíbula grande. Decorridos três milhões de anos, evoluiu nosso ancestral ereto e de cérebro grande, o Homo Sapiens, que aprendeu a fazer fogo, a usar utensílios de pedra, e (finalmente) a falar. Esse onívoro espalhou-se aproximadamente um milhão de anos atrás, pela Ásia e pela Europa, e uma linha direta de seus desentendes levou, por volta de 150.000 a.C., ao Homo sapiens sapiens.

Os caçadores-coletores, que foram nossos precursores no Paleolítico, atormentados por ambientes severos e perigosos, tinham a vida curta. Mesmo assim, escaparam das pestes que viriam a assolar as sociedades posteriores. Mais ou menos como os bosquímanos do Kalahari, eram nômades que viviam em grupos pequenos e dispersos. As doenças infecciosas (varíola, sarampo, gripe e similares) deviam ser praticamente desconhecidas, uma vez que os microorganismos responsáveis por elas precisam de altas densidades populacionais que lhes proporcionem reservatórios de hospedeiros susceptíveis. E esse caçadores-coletores isolados também não ficavam num mesmo lugar por tempo suficiente para poluir as fontes de água ou depositar a sujeira que atrai insetos disseminadores de doenças. Acima de tudo, eles não tinham os animais domésticos que desempenharam um papel sumamente dúbio na história humana. Embora as criaturas domesticadas tenham possibilitado a civilização, também se revelaram fontes de contínuas e amiúde devastadoras de moléstias.

À medida que os seres humanos colonizaram o globo, eles mesmos foram colonizados por agentes patogênicos. Entre estes se incluiriam vermes e insetos parasitários — helmintos, pulgas, carrapatos, e artrópodes — e também microorganismos como bactérias, vírus e protozoários, cujos índices ultra-rápidos de reprodução produzem doenças graves no hospedeiro, mas, em geral — o que é um pequeno consolo —, provocam nos sobreviventes uma certa imunidade contra a reinfecção. Esses inimigos microscópicos engalfinharam-se com os seres humanos, em luta evolutiva pela sobrevivência que se caracterizaram não pela existência final de vencedores e derrotados, mas por uma incômoda coexistência.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Uma visão da humanidade — na terra, no espaço, no tempo.

universe

The Sagan Series. Voz de Carl Sagan, baseado no livro Pálido Ponto Azul — Uma visão da humanidade no Espaço. Vídeo edição: Michael Marantz. Legendas: Bule Voador.

A Fronteira Estava em Toda a Parte

A Vida Procura por Vida

Uma Fábula Reconfortante

NASA Per Aspera Ad Astra

SETI Decida Escutar

… “A vela da ciência sempre estará próxima da mente preparada, clareando-a o bastante, distanciado-a da escuridão; iluminando-a o bastante, sem deixa-la cega”.

domingo, 3 de julho de 2011

Aberrações da Luz

Por Carl Sagan, em Pálido Ponto Azul (1994).

Foto Divulgação

     Ann Druyan sugere uma experiência: olhem de novo para o pálido ponto azul ao lado. Observem bem. Olhem fixamente para o ponto por um longo tempo e tentem se convencer de que Deus criou todo o Universo para uma das aproximadamente 10 milhões de espécies de vida que habitam este grão de poeira. Agora dêem um passo adiante: imaginem que tudo foi feito apenas para uma única nuança dessa espécie, gênero ou subdivisão religiosa ou étnica. Se isso não lhes parecer improvável, tomem outro dos pontos. Imaginem que ele é habitado por uma forma diferente de vida inteligente. Que também nutre a noção de um Deus que criou todas as coisas para o seu bem. Até que ponto vocês levariam a sério essa pretensão?

     — “Está vendo aquela estrela?”
     — “A vermelha brilhante”? — pergunta a filha em resposta.
     — “Sim. Sabe, ela talvez já não esteja ali. Poder ter desaparecido a essa altura —explodido ou algo assim. A sua luz ainda está cruzando o espaço, só agora atingindo nossos olhos. Mas não a vemos como ela é. Nós a vemos como ela foi”.

     Muitas pessoas experimentam estimulante admiração quando se vêem, pela primeira vez, diante dessa verdade simples. Por quê? Por que ela seria tão irresistível? Em nosso pequeno mundo, a luz se move, para todos os fins práticos, instantaneamente. Se uma lâmpada está acessa, é claro que se encontra brilhando onde a vemos. Estendemos a mão e a tocamos: está ali, sem dúvida alguma; e desagradavelmente quente. Se o filamento se rompe, a luz se apaga. Não a vemos no mesmo lugar, brilhando, iluminando o quarto, anos depois que se queimou e foi removida de seu suporte. A simples idéia parece sem sentido. Se estamos distantes, porém, um sol inteiro pode se apagar e continuaremos a vê-lo brilhar resplandecentemente; é bem possível que, por eras, fiquemos sem saber de sua morte — na verdade, durante o período do tempo que a luz, de velocidade assombrosa mas não infinita, leva para cruzar a imensidão intermediária.

     As imensas distâncias até as estrelas e as galáxias significam que todos os corpos que vemos no espaço estão no passado — alguns deles tal como eram antes que a Terra viesse a existir. Os telescópios são máquinas do tempo. Há muitas eras, quando uma galáxia primitiva começou a derramar luz na escuridão circundante, nenhuma testemunha poderia ter adivinhado que bilhões de anos mais tarde alguns blocos remotos de rocha e metal, gelo e moléculas orgânicas, se juntariam para formar um lugar chamado Terra; nem surgiria a vida; nem que seres pensantes evoluiriam e um dia captariam um ponto dessa luz galáctica, tentando decifrar o que a enviara em sua trajetória. E depois que a Terra morrer, daqui a uns 5 bilhões de anos, depois que ela for calcinada ou até tragada pelo Sol, surgirão outros mundos, estrelas e galáxias — e eles nada saberão de um lugar outrora chamado Terra.

     Quase nunca parece preconceito. Ao contrário, parece apropriada a justa idéia de que, por ter nascido acidentalmente, o nosso grupo (seja ele qual for) deveria ter uma posição central no universo social. Entre os principais faraônicos e os pretendentes dos Plantagenet, os filhos de barões saqueadores e os burocratas do Comitê Central; as gangues de rua e os conquistadores de nações; os membros de maiorias convictas; seitas obscuras e minorias ultrajadas; essa atitude de favorecer os seus próprios interesses, parece tão natural quanto respirar. Ele tira o seu sustento das mesmas fontes em que se alimentam o sexismo, o racismo, o nacionalismo e outros chauvinismos mortais que atormentam nossa espécie. É necessária força incomum de caráter para resistir às lisonjas dos que nos atribuem uma superioridade evidente, até concedida por Deus, sobre os nossos companheiros. Quando mais precária a nossa auto-estima, maior a nossa vulnerabilidade a esses apelos.

     Como os cientistas são pessoas, não é surpreendente que pretensões parecidas tenham se insinuado na visão científica do mundo. Na verdade, muitos dos debates centrais na história da ciência parecem ser, ao menos em parte, disputas em que se procura decidir se os seres humanos são especiais. Quase sempre, o pressuposto aceito é de que a premissa é examinada com cuidado, descobre-se — em um número desalentadoramente grande de casos — que não somos.

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     Os nossos antepassados viviam ao ar livre. Sua familiaridade com o céu noturno era igual à que temos hoje com nossos programas favoritos de televisão. O Sol, a Lua, as estrelas e os planetas, todos nasciam no leste e se punham no oeste, cruzando o alto do céu nesse meio tempo. O movimento dos corpos celestes não era simplesmente uma diversão, provocando uma saudação ou resmungo reverente — era a única maneira de reconhecer as horas do dia e as estações. Para os caçadores e colhedores, bem como para os povos agrícolas, conhecer o céu era uma questão de vida ou morte.

     Providencial que o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas fizessem parte de um relógio cósmico elegantemente configurado? Nada parecia acidental. Eles ali estavam, a nosso serviço. Quem mais fazia uso deles? Para que mais serviam?

     E as luzes no céu se levantam e se põem ao nosso redor, não é evidente que estamos no centro do Universo? Os corpos celestes — tão claramente impregnados de poderes extraterrenos, especialmente o Sol, de que dependemos tanto, pois dele dependemos tanto, pois dele recebemos luz e calor — giram ao redor de nós como cortesãos adulando o rei. Mesmo que ainda não tivéssemos adivinhado, o exame mais elementar dos céus revela que somos especiais. O Universo parece projetado para seres humanos. É difícil considerar essas circunstancias sem experimentar confiança e orgulho. Todo o Universo feito para nós! Devemos ser realmente algo especial.

     Essa demonstração satisfatória de nossa importância, escorada na observação cotidiana dos céus, transformou o conceito geocêntrico em uma verdade transcultural — ensinada nas escolas, incorporada à língua, parte integrante da grande literatura e das Escrituras Sagradas. Os dissidentes foram desencorajados, às vezes por meio de tortura e morte. Não é de admirar que, durante a maior parte da história humana, ninguém a tenha questionado.

     Era, sem dúvida, a visão de nossos antepassados caçadores e saqueadores. No segundo século, Ptolomeu, o grande astrônomo da Antigüidade, sabia que a Terra era uma esfera, sabia que seu tamanho era “um ponto” se comparado à distância das estrelas e ensinava que ela estava “bem no meio dos céus”. Aristóteles, Platão, santo Agostinho, santo Tomás de Aquino e quase todos os grandes filósofos e cientistas de todas as culturas acreditaram nessa ilusão durante 3 mil anos até o século XVII. Alguns se ocupavam em imaginar como o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas poderiam estar engenhosamente presos a esferas cristalinas, de transparência perfeita — as grandes esferas, é claro, centradas na Terra —, o que explicaria os movimentos complexos dos corpos celestes. Tão meticulosamente relatados por gerações de astrônomos. E foram bem-sucedidos: com modificações posteriores, a hipótese geocêntrica explicava adequadamente os fatos do movimento planetário, assim como este era conhecido nos séculos II e XVI.

     Daí foi apenas um passo para reivindicação ainda mais grandiosa — a de que a “perfeição” do mundo seria incompleta sem os seres humanos, como Platão afirmou em Timeu. “O homem é tudo”, escreveu o poeta e clérigo John Donne em 1625. “Ele não é uma parte do mundo, mas o próprio mundo; e logo abaixo da glória de Deus, a razão da existência do mundo”.

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     A Terra, no entanto — não importa quantos reis, papas, filósofos, cientistas e poetas tenham insistido em afirmar o contrário — persistiu em girar em torno do Sol durante todos esses milênios. Pode-se imaginar um observador extraterrestre severo olhando a nossa espécie com desprezo durante todo o tempo, enquanto tagarelávamos animadamente: “O Universo criado pra nós! Somos o centro! Tudo nos rende homenagem! E concluído que nossas pretensões são divertidas; nossas aspirações patéticas e que este deve ser o planeta dos idiotas.

     Esse juízo é demasiado severo, porém. Fizermos o melhor possível. Havia uma coincidência infeliz entre as aparências cotidianas e nossas esperanças secretas. Tendemos a não ser especialmente críticos diante de evidências que parecem confirmar nossos preconceitos. E havia pouca evidência que os anulasse.

     Em abafado contraponto, algumas vozes dissidentes, através dos séculos, aconselhavam humildade e uma visão mais realista. Na aurora da ciência, os filósofos atomistas da Grécia e Roma antigas — que sugeriram pela primeira vez que a matéria é feita de átomos — Demócrito, Epicuro e seus discípulos (e Lucrecio, o primeiro divulgador da ciência), propuseram a escandalosamente a existência de muitos mundos e muitas formas alienígenas de vida, todos constituídos pelas mesmas espécies de átomos de que somos feitos. Apresentavam à nossa consideração infinidades no espaço e no tempo. Mas nos cânones predominantes do Ocidente, seculares e sacerdotais, pagãos e cristãos, as idéias atomistas eram atacadas. Ao contrário do que professavam, os céus não eram absolutamente parecidos com o nosso mundo. Eram inalteráveis e “perfeitos”. A Terra era mutável e “corrupta”. O estadista e filósofo romano Cícero resumiu a opinião comum: “Nos céus... não há sorte ou acaso, nem erro ou frustração, mas uma ordem absoluta, exatidão, calculo e regularidade”.

     A filosofia e a religião alertavam que os deuses (ou Deus) eram muito mais poderosos que nós, ciosos de suas prerrogativas e rápidos em dispensar justiça por qualquer arrogância intolerável. Ao mesmo tempo, essas disciplinas nem sequer suspeitavam de que seu próprio ensinamento sobre a organização do Universo era uma presunção e um engano.

     A filosofia e a religião apresentavam simples opiniões — que poderiam ser derrubadas pela observação e experimentação — com certezas. Que algumas de suas convicções profundamente arraigadas pudessem se revelar erros não era uma possibilidade considerada. Isso não as preocupava de modo algum. A humildade doutrinaria deveria ser praticada pelos outros. Os próprios ensinamentos eram isentos de erro; infalíveis. Na verdade, eles tinham mais razoes para ser humildes do que imaginavam.

     A partir de Copérnico, da metade do século XVI em diante, a questão passou a ser formalmente discutida. Era considerado perigoso imaginar que o Sol, e não a Terra, estava no centro do Universo. Condescendentemente, muitos estudiosos apressaram-se em garantir à hierarquia religiosa que essa nova hipótese não representava nenhum sério desafio à sabedoria convencional. Numa espécie de solução de compromisso esquizofrênica, o sistema centrado no Sol foi tratado como simples conveniência computacional e não como realidade astronômica. Em outras palavras: a Terra realmente não estava no centro do Universo, como todos sabiam; mas se alguém desejava predizer onde Júpiter estaria na segunda-feira de novembro do ano seguinte, era-lhe permitido “fingir” que o Sol estava no centro. Então era possível fazer o calculo sem afrontar as autoridades.

     “Não há perigo nenhum nisso”, escreveu Robert Cardinal Bellarmine, o principal teólogo do Vaticano no inicio do século XVII, “e satisfaz os matemáticos. Mas afirmar que o Sol está na verdade fixo no centro dos céus e que a Terra gira muito rapidamente ao redor dele, é perigoso, pois não só irrita os teólogos e os filósofos, como ofende a Santa Fé e torna falsa a Sagrada Escritura”.

     “A liberdade de opinião é perniciosa”, escreveu Bellarmine em outra ocasião. “Nada mais é do que a liberdade de estar errado.”

     Além disso, se a Terra girasse ao redor do Sol, as estrelas próximas dariam a impressão de se moverem contra o pano de fundo das estrelas mais distantes, sempre que, a cada seis meses, deslocássemos nossa perspectiva de um lado da órbita da Terra para o outro. Não se havia descoberto nenhuma “paralaxe anual” desse tipo. Os copernicanos argumentavam que isso se devia ao fato de as estrelas estarem extremamente longe — talvez um milhão de vezes mais distantes do que a Terra está do Sol. Melhores telescópios, no futuro, talvez descobrissem uma paralaxe anual. Os adeptos do geocentrismo consideravam esse argumento uma tentativa desesperada de salvar uma hipótese falha, risível diante das circunstâncias.

     Quando Galileu virou o primeiro telescópio astronômico para o céu, a maré começou a mudar. Ele descobriu que Júpiter tinha um pequeno séqüito de luas descrevendo órbitas ao seu redor, as mais próximas girando mais rápido que as mais afastadas, exatamente como Copérnico tinha concluído a respeito do movimento dos planetas ao redor do Sol. Observou que Mercúrio e Vênus passavam por fases com a Lua (o que indicava que giravam ao redor do Sol.). Além disso, a Lua cheia de crateras e o Sol coberto de manchas, desafiavam a perfeição dos céus. Este pode ter sido, em parte, o tipo de problema que preocupava Tertuliano uns 1300 anos antes, quando pedia: “Se você tem algum tino ou decoro, pare de sondar as regiões do céu, o destino e os grandes segredos do Universo”.

     Ao contrário, Galileu ensinava que se pode interrogar a natureza por meio da observação e da experimentação. Assim, “fatos que à primeira vista parecem improváveis, deixarão cair o manto que os encobre, e, aparecerão em toda a sua beleza simples e nua, mesmo que à luz de explicações escassas”. Esses fatos, que até os céticos podem confirmar, não são uma visão do Universo de Deus mais segura que todas as especulações dos teólogos? E se, todavia, esses fatos contradisserem as convicções daqueles que consideram a sua religião incapaz de cometer erros? Os príncipes da Igreja
ameaçaram o astrônomo idoso com torturas se ele persistisse em lecionar a doutrina abominável de que a Terra se movia. Foi condenado a uma espécie de prisão domiciliar para o resto de sua vida.

     Uma ou duas gerações mais tarde, na época em que Isaac Newton demonstrou que uma física simples e elegante podia explicar quantitativamente — e predizer — todos os movimentos planetários e lunares observados (desde que se assumisse que o Sol estava no centro do Sistema Solar), a ilusão geocêntrica desgastou-se ainda mais.

Distance Ligth Star in Night Sky

     Em 1725, numa tentativa de descobrir o paralaxe estelar, o dirigente astrônomo amador inglês James Bradley, encontrou, por acaso, a aberração da luz. (Acho que o termo aberração da luz traz em si um pouco de caráter inesperado da descoberta). Observando-as ao longo de um ano, descobriu-se que as estrelas traçavam pequenas elipses no céu. Era, conforme se constatou, o que todas as estrelas faziam. Isso não podia ser paralaxe, pois se esperava uma grande paralaxe para as estrelas próximas e outra incapaz de ser detectada para as estrelas distantes. Em lugar disso, a aberração é semelhante a impressão de estarem caindo obliquamente que as gotas de chuva, que atingem um carro em movimento, dão aos passageiros; quanto mais veloz o carro, mais pronunciada a inclinação. Se a Terra estivesse parada no centro do Universo, em vez de se movendo velozmente ao redor do Sol, Bradley não teria descoberto a aberração da luz. Era uma demonstração irrefutável de que a Terra girava em torno do Sol. Convenceu a maioria dos astrônomos e alguns outros, mas não convenceu, na opinião de Bradley, os “anticopernicanos”.

     Só em 1837 observações diretas das estrelas mostraram de forma muito clara que a Terra, de fato, gira ao redor do Sol. A paralaxe anual tão longamente discutida foi por fim descoberta — não por melhores argumentos, mas por melhores instrumentos. Como explicar o que a paralaxe significa é muito mais simples que explicar a aberração da luz, sua descoberta foi muito importante. Colocou o último prego no caixão do geocentrismo. Basta olhar para o seu dedo com o olho esquerdo e depois com o direito, e você verá que ele parece se mover. Todo mundo é capaz de compreender a paralaxe.

     No século XIX, caso ainda existam alguns relutantes, podemos resolver a questão diretamente. Podemos testar se vivemos num sistema centrado na Terra, com planetas afixados em esferas de cristal transparente, ou num sistema centrado no Sol, com planetas controlados a distância pela gravidade dessa estrela. Por exemplo, temos investigados os planetas com radar. Quando fazemos um sinal ricochetear numa lua de Saturno, não captamos nenhum eco de rádio vindo de uma esfera de cristal mais próxima, ligada a Júpiter. Nossas naves espaciais chegam a seus destinos com precisão newtoniana. Quando nossas naves voam a Marte, seus instrumentos não captam nenhum tinido nem detectam cacos de cristal quebrado, ao irromperem pelas “esferas” que — segundo as opiniões autorizadas que prevaleceram durante milênios — impelem Vênus ou o Sol em seus movimentos obedientes ao redor da Terra Central.

     Ao esquadrinhar o Sistema Solar de um ponto além do planeta mais afastado, a Voyager 1, viu, assim como Galileu e Copérnico haviam previsto, o Sol no meio e os planetas em órbitas concêntricas ao seu redor. Longe de ser o centro do Universo, a Terra é apenas um dos pontos em órbita. Por já não estamos convidados em um mundo único, somos agora capazes de alcançar outros mundos e determinar de forma decisiva que tipo de sistema planetário habitamos.

     Todas as outras propostas, e seu número é impressionante, de nos afastar do centro do palco cósmico também encontraram resistência, em partes por razões semelhantes. Parecemos ansiar por privilégios a que não teríamos direito por nossas realizações, mas pelo nosso nascimento, pelo simples fato de sermos humanos e termos nascido sobre a Terra. Poderíamos dar a essa presunção o nome de antropocêntrica — “centrada no humano”.

     Presunção que beira o clímax na noção de que somos criados à imagem de Deus: o Criador e Regente de todo o Universo se parece comigo. Céus, que coincidência! Que conveniente e satisfatório! Xenófanes, filósofo grego do século VI a. C., compreendeu a arrogância desse ponto de vista: Os etíopes atribuem a seus deuses pele preta e nariz arrebitado; os trácios dizem que os seus têm olhos azuis e cabelo vermelho... Sim, e se os bois, os cavalos ou os leões tivessem mãos, pudessem pintar e produzir obras de arte
como os homens; os cavalos pintariam os deuses sob a forma de cavalos e os bois lhes dariam a forma de bois.

     Essas atitudes eram outrora descritas como “provincianas” — a expectativa ingênua de que as hierarquias políticas e as convenções sociais de uma província obscura se estendessem a um imenso império composto de muitas tradições e culturas diferentes; de que as aldeias familiares, as nossas aldeias, são o centro do mundo. Os caipiras quase nada sabem da possibilidade de alternativas. Não conseguem compreender a insignificância de sua província nem a diversidade do Império. Com desenvoltura, aplicam seus próprios padrões e costumes ao resto do planeta. Mas despejados em Viena, por exemplo, Hamburgo ou Nova York, reconhecem tristemente o quanto a sua perspectiva é limitada. Tornam-se “desprovincianizados”.

     A ciência moderna tem sido uma viagem ao desconhecido, com uma lição de humildade em cada parada. Muitos passageiros teriam preferido ficar em casa.