segunda-feira, 20 de junho de 2011

Por Que Sou Agnóstico? — Parte I

     NLScience está começando a brotar. E pra dar inicio de uma forma excepcional às novas postagens e aos novos temas, decidi começar com o seguinte ensaio, intitulado “Por Que Sou Agnóstico”, de Robert G. Ingersoll, sendo redigido em 1896. Ensaio esse que adoro bastante, tanto pela perspicuidade do autor, tanto pela razão completa e demasiadamente concisa; sendo também por sua capacidade e coragem em criticar, de forma direta, um algo que até hoje oferece um extremo perigo humano, se for criticado, mesmo o criticador tendo toda a razão respaldada a seu favor.

Robert Green Ingersoll with hands on hips-Photo-B&W-Resized       Robert G. Ingersoll (1833-1899) foi um livre pensador americano do século XIX, um orador e líder político estadunidense, notável por sua cultura e defesa do agnosticismo. Crítico da religião cristã, tornou-se agnóstico.

     Em “Por que sou agnóstico”, Ingersoll relata sua experiência junto ao cristianismo e sua repugnância pela religião.

     A experiência de um homem que ousou, em um determinado momento de sua vida, a pensar “fora da caixa” — lugar onde muitos poucos ousam ir.

     Herdamos a maior parte de nossas opiniões. Somos herdeiros de hábitos e costumes mentais. Nossas crenças, assim como o estilo de nossas roupas, dependem do local em que nascemos. Somos moldados e formados pelo ambiente que nos circunda.

     O ambiente é um escultor – um pintor.

     Se tivéssemos nascido em Constantinopla, a maioria de nós diria: “Não há qualquer Deus senão Alá, e Maomé é seu profeta”. Se nossos pais vivessem nas margens do Ganges, seríamos adoradores de Shiva, sequiosos pelo céu de Nirvana.

     Por via de regra, os filhos amam seus pais, acreditam no que eles dizem e orgulham-se muito de dizer que a religião de seus pais lhes é satisfatória.

     Em grande parte os indivíduos amam a paz; não gostam de desavenças com seus vizinhos; gostam de companhia; são sociais; gostam de perseguir seus objetivos acompanhados; odeiam a solidão.

     Os escoceses são calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses são católicos porque seus pais eram. Os ingleses são episcopais porque seus pais eram. Os americanos são divididos em centenas de seitas porque seus pais eram. Esta é uma regra geral, com muitas exceções. Os filhos às vezes são superiores aos seus pais, modificam suas idéias, seus costumes, e chegam a conclusões diferentes. Mas normalmente a divergência surge de modo tão gradativo que mal se percebe, sendo comum insistirem que estão seguindo os passos dos pais.

     Historiadores cristãos afirmam que a religião de uma nação algumas vezes foi repentinamente mudada, e milhões de pagãos foram transformados em cristãos sob o comando de um rei. Os filósofos não concordam com esses historiadores. Nomes foram alterados, altares foram destruídos, mas as opiniões, os costumes e as crenças permaneceram as mesmas. Um pagão, subjugado pela espada de um cristão, provavelmente mudaria sua posição religiosa; um cristão, com uma cimitarra em seu pescoço, espontaneamente se tornaria um maometano. Na realidade, por dentro, ambos continuam sendo exatamente o que eram antes.

     A crença não está sujeita à vontade. Os homens pensam como precisam pensar. Crianças não crêem, nem podem crer, exatamente no que lhes foi ensinado. Elas não são totalmente idênticas aos seus pais. Elas diferem em temperamento, em experiência, em capacidade, em atmosfera. Apesar de imperceptível, há uma mudança contínua. Há desenvolvimento, há crescimento consciente e inconsciente; comparando-se longos períodos de tempo, percebe-se que o velho foi quase totalmente abandonado, quase totalmente sobreposto pelo novo. O homem não é capaz de permanecer imutável. A mente não pode ser ancorada. Se não avançarmos, vamos retroceder. Se não crescermos, vamos definhar. Se não nos desenvolvermos, vamos atrofiar.

     Como a maioria de vocês, fui criado entre pessoas que sabiam – que estavam convictas. Não tinham motivos para questionar ou investigar. Não tinham dúvidas. Sabiam-se possuidoras da verdade. Em suas crenças não havia suposições, não havia talvez. Elas tinham a revelação de Deus. Conheciam o início de tudo. Sabiam que Deus havia começado a criação numa segunda, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Sabiam que na eternidade anterior àquela manhã ele não havia feito nada. Sabiam que ele levou seis dias para criar a Terra – todas as plantas, todos os animais, toda a vida e todos os globos que giram no espaço. Sabiam exatamente o que havia feito em cada dia e quando descansou. Sabiam qual era a origem, a causa do mal, de todos os crimes, de todas doenças e da morte.

     Conheciam não apenas o começo, mas também o fim. Sabiam que a vida tinha dois caminhos, um largo e um estreito. Sabiam que o caminho estreito, cheio de espinhos e urtigas, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado por pés sangrentos, conduzia ao céu; e que o caminho largo, plano, ladeado por frutas e flores, repleto de riso, música e felicidade conduzia diretamente ao inferno. Sabiam que Deus estava fazendo todo o possível para que escolhessem o caminho estreito, e o Demônio usando todas artimanhas para que escolhessem o caminho largo.

     Sabiam que havia uma batalha perpétua entre os grandes Poderes do bem e do mal pela posse das almas humanas. Sabiam que, muitos séculos atrás, Deus deixou seu trono e veio a este pobre mundo na forma de um bebê – que morreu pelos homens – a fim de salvar uns poucos. Também sabiam que o coração humano encontrava-se totalmente depravado, que o homem naturalmente amava o mal e odiava a Deus com toda sua força.

     Ao mesmo tempo, sabiam que Deus havia criado o homem à sua imagem e semelhança, e que estava perfeitamente satisfeito com sua obra. Também sabiam que o homem havia sido corrompido pelo Demônio, que com embustes e mentiras enganou o primeiro ser humano. Sabiam que, como conseqüência disso, Deus amaldiçoou o homem e a mulher; o homem com o trabalho, a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte; e que também amaldiçoou a própria Terra com espinhos e abrolhos. Tinham conhecimento de todas essas coisas sagradas. Também sabiam tudo que Deus havia feito para purificar e elevar a humanidade. Sabiam tudo sobre o dilúvio; sabiam que Deus – com exceção de Noé e sua família – havia afogado todos os seus filhos – tanto os jovens quanto os velhos, tanto os bebês quanto os patriarcas, tanto os homens quanto as mulheres, tanto as mães amorosas quando as crianças felizes –, pois sua misericórdia dura para sempre. Também sabiam que havia afogado todas as bestas e aves – tudo que caminha, rasteja ou voa –, pois seu amor se estende por todas as suas criaturas. Sabiam que Deus, no intuito de civilizar seus filhos, devorou alguns com terremotos, destruiu outros com tempestades de fogo, matou alguns com raios, milhões com fome, com pestilência, e sacrificou inúmeros milhares nos campos de batalha. Sabiam que era necessário crer em tais coisas e amar a Deus. Sabiam que a salvação só poderia vir através da fé e do purificante sangue de Jesus Cristo.

     Todos que duvidassem ou contestassem estariam perdidos. Viver uma vida moral e honesta – honrar seus contratos, cuidar de sua esposa e filhos, construir um lar feliz, ser um bom cidadão, um patriota, um homem justo e reflexivo – era simplesmente um modo respeitável de ser condenado ao inferno.

     Deus não recompensava os homens pela sua honestidade, sua generosidade, sua coragem, mas simplesmente pela sua fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes convertiam-se em pecado. Todos os homens que praticassem tais virtudes sem fé mereciam sofrer o suplício eterno.

     Todas essas coisas confortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos, pelos professores em aulas dominicais e pelos pais em casa. As crianças eram vítimas – eram atacadas em seus próprios berços, nos braços de suas mães. Os professores travavam sua guerra contra o sentido natural das crianças, e todos os livros que liam eram repletos das mesmas verdades impossíveis. As pobres crianças estavam indefesas. A atmosfera que respiravam estava saturada de mentiras – mentiras que se tornaram parte delas.

     Naqueles dias os ministros dependiam dos cultos para salvar as almas e reformar o mundo.

     No inverno, estando a navegação interrompida, o comércio era quase totalmente suspenso. Não havia ferrovias e os únicos meios de transporte eram carroças e barcos. Em geral, as estradas eram tão precárias que se dava preferência aos barcos. Não havia óperas, teatros, nenhum entretenimento senão festas e bailes. As festas eram consideradas mundanas, e os bailes, pervertidos. Para as pessoas boas que estivessem em busca de uma alegria verdadeira e virtuosa, havia os cultos.

     Os sermões eram predominantemente sobre as dores e as agonias do inferno, sobre a felicidade e o êxtase do céu, sobre a salvação através da fé e a eficiência da expiação. As pequenas igrejas onde ocorriam os cultos eram geralmente pequenas, mal ventiladas e excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções tristes, os améns histéricos, a esperança do céu e o medo do inferno fizeram com que muitos perdessem o pouco de senso crítico que tinham. Tornaram-se substancialmente insanos. Nestas condições, dirigiam-se ao “banco das lamentações”, tinham sensações estranhas, rezavam e lamuriavam, e pensavam ter “renascido”. Então relatavam sua experiência – quão pervertidos eram, quão maus eram seus pensamentos, seus desejos, e quão bons subitamente tornaram-se.

     Costumavam contar a história de uma velha mulher que, ao narrar sua experiência, disse o seguinte: “Antes de ter me convertido, antes de ter dado meu coração a Deus, costumava mentir e roubar. Agora, pela graça e pelo sangue de Jesus Cristo, abandonei aquela vida”.

     Obviamente, nem todas as pessoas pensavam da mesma maneira. Alguns eram zombeteiros, e de vez em quando alguns homens tinham bom-senso suficiente para rir das ameaças dos padres e troçar do inferno. Alguns falavam de incrédulos que haviam vivido e morrido em paz.

     Quando eu era criança, ouvi-os falar sobre um velho fazendeiro de Vermont que estava morrendo. O pregador estava ao lado de sua cama, e perguntou se ele era um cristão, se estava preparado para morrer. O velho respondeu que não havia preparado-se, que não era cristão – que em toda a sua vida não havia feito nada senão trabalhar. O pregador respondeu que não poderia lhe dar qualquer esperança caso não tivesse fé em Cristo – que sem fé sua alma certamente estaria perdida.

     O homem não estava amedrontado, mas perfeitamente calmo. Com uma voz fraca e quebrantada, disse: “Caro pastor, suponho que o senhor já tenha conhecido minha fazenda. Eu e minha esposa viemos para cá há mais de cinqüenta anos. Éramos recém-casados. Era tudo uma floresta, e a terra estava coberta de pedras. Cortei as árvores, queimei os troncos, recolhi as pedras e erigi as paredes. Minha esposa costurava e tecia, trabalhava o tempo todo. Criamos e educamos nossos filhos – abdicamos a nós mesmos. Durante todos esses anos minha esposa nunca teve um vestido ou um chapéu decentes. Eu nunca tive roupa boa. Vivíamos da comida mais simples. Nossas mãos e nossos corpos deformaram-se pelo trabalho. Nunca tivemos férias. Amamos um ao outro e os nossos filhos – esse foi o único luxo que jamais tivemos. Agora estou à beira da morte e o senhor me pergunta se estou preparado. Caro pastor, não temo o futuro, nem qualquer terror de outro mundo. Talvez até exista um lugar como o inferno, mas o senhor nunca me fará acreditar que possa ser ainda pior que Vermont”.

     Então contaram sobre um homem que se comparou ao seu cachorro. “Meu cachorro”, disse ele, “apenas late e brinca. Pode comer o quanto quiser. Nunca trabalha e nem se preocupa com negócios. Daqui algum tempo ele morrerá, e isso é tudo. Eu trabalho com toda a minha força, não tenho tempo para brincar, me deparo com problemas diariamente. Logo morrerei, e então irei para o inferno. Queria estar no lugar do meu cachorro”.

     Bem, enquanto durasse o frio, enquanto houvesse neve, a pregação continuava, mas quando o inverno terminava, quando o apito dos barcos a vapor fazia-se ouvir, quando o comércio recomeçava, a maioria dos convertidos “apostatava”, retornando aos seus antigos costumes. Mas no próximo inverno lá estavam eles, prontos para serem “convertidos”. Formavam uma espécie de trupe, representando os mesmos papéis todos invernos, e apostatando em todas primaveras.

     Os ministros que pregavam nestas cerimônias eram sérios. Eram diligentes e sinceros. Não eram filósofos. Para eles, ciência o sinônimo de uma vaga ameaça – de um perigoso inimigo. Não sabiam muito, mas acreditavam bastante. Para eles as chamas do inferno eram reais – podiam avistar a fumaça e as labaredas. O Demônio não era um mito, era uma pessoa de verdade, um rival de Deus, um inimigo da humanidade. Pensavam que o importante nesta vida era salvar a alma – que todos deveriam resistir e desprezar os prazeres dos sentidos, mantendo os olhos totalmente fitos no portão dourado da Nova Jerusalém. Eram desbalanceados, emotivos, histéricos, fanáticos, odiosos, amorosos e insanos. Acreditavam literalmente que a Bíblia era a verdadeira palavra de Deus – que era um livro sem erros ou contradições. Chamavam suas crueldades de justiça; seus absurdos de mistérios; seus milagres de fatos; viam suas passagens idiotas como algo profundamente espiritual. Cuidavam de evidenciar o pavor, o arrependimento e a agonia dos perdidos e de demonstrar quão facilmente isso poderia ser evitado, quão acessível era o céu. Diziam a seus ouvintes que acreditassem, que tivessem fé, que dessem seu coração a Deus e seus pecados a Cristo, o qual carregaria seus pecados e tornaria suas almas alvas como a neve.

     Os ministros realmente acreditavam nisso tudo. Estavam absolutamente convictos. Em vão o Demônio havia tentado semear dúvida em suas mentes.

     Ouvi centenas desses sermões evangélicos – centenas das mais aterrorizantes e vívidas descrições das torturas infligidas no inferno, da horrível situação dos que se perderam. Supunha que o que tinha ouvido era verdade, mas não conseguia acreditar. Eu dizia: “É verdade”, então pensava: “Mas não pode ser”.

     Esses sermões só deixaram fracas impressões em minha mente. Não estava convencido.

     Não tinha o desejo de ser “convertido”, não queria um “novo coração” e não ansiava nem um pouco por “renascer”.

     Mas ouvi um sermão que tocou meu coração, que deixou sua marca como uma cicatriz em meu cérebro.

     Num domingo fui com meu irmão ouvir um pregador batista do livre arbítrio. Era um homem corpulento, vestido como fazendeiro, mas que era um orador. Ele conseguia pintar um quadro usando palavras.

     Escolheu para seu discurso a parábola do “homem rico e lázaro”.¹

     Descreveu o homem rico – seu estilo de vida, os excessos a que se entregava, sua extravagância, suas noites luxuriosas, seus finos linhos purpúreos, seus banquetes, seus vinhos e suas belas mulheres.

     Então descreveu Lázaro – sua pobreza, sua miséria maltrapilha, seu corpo consumido pela enfermidade, as cascas e migalhas que devorava, os cachorros tinham piedade dele. Descreveu sua vida solitária, sem amigos.

     Então, mudando o tom de piedade para triunfo, passando das lágrimas à exultação, da derrota à vitória, descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que com suas asas alvas estendidas carregavam a alma do pobre desprezado para o Paraíso – para o seio de Abraão.

     Em seguida, dando à voz um tom de desprezo e repugnância, falou sobre a morte do homem rico. Estava em seu palácio, em sua caríssima cama, o ar cheio de perfume, o quarto cheio de servos e médicos. Todo seu ouro era inútil – não podia comprar outro suspiro. Então morreu, e quando abriu os olhos estava no inferno, em tormento.

     Então, com uma expressão dramática, colocou sua mão direita na orelha e sussurrou:

     “Escutem! Ouço a voz do homem rico. O que ele diz? Ouçam! ‘Pai Abraão! Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta de seu dedo na água e refresque minha língua seca, pois estou atormentado pelas chamas’. Oh, meus irmãos, ele vem fazendo este pedido há mais de dezoito séculos. E por milhões de anos este lamento ainda ecoará pelo abismo que separa os salvos dos perdidos. ‘Pai Abraão! Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta se seu dedo na água e refresque minha língua seca, pois estou atormentado pelas chamas’”.

     Pela primeira vez compreendi o dogma da danação eterna e as “boas novas da bem-aventurança”. Pela primeira vez minha imaginação apreendeu as alturas e as profundezas do horror cristão.

     Então eu disse: “É uma mentira, odeio sua religião. Mas se é verdadeira, odeio o seu Deus”.

     A partir daquele dia não tive mais medo nem dúvidas. Para mim, naquele dia, as chamas do inferno foram extintas. A partir daquele dia passei a odiar profundamente quaisquer crenças ortodoxas.

     Aquele sermão me fez algum bem.

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Por Que Sou Agnóstico? — Parte II

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